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“Havia alguns edifícios muito altos que podiam andar. O mais alto deles é mordido por um vampiro que perde os dentes após o ataque e chora. Outros vampiros perguntam o motivo do choro e ele explica que perdeu seus dentes, e não eram de leite. Então os vampiros o deixam, porque não poderia ser mais um vampiro”. (História contada por Max , um criativo garoto de 9 anos e também o protagonista do filme)
Os dentes, neste caso, representam nossa capacidade agressiva, recurso essencial para a sobrevivência. O ato de comer, ler, digerir um texto, ir em busca, posicionar-se, dirigir, romper… são manifestações agressivas positivas. Dentro desta mesma esfera temos os atos antissociais, reações agressivas que ocorrem após uma falha ambiental e funcionam como uma espécie de protesto, reivindicação de cuidados adequados.
No outro extremo encontramos a agressividade associada à violência, destruição. Essa violência caótica e desordenada revela falha no cuidado dos primeiros sinais de agressividade “normal”, permanecendo assim sem forma e nem limite.
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No decorrer de nossas vidas somos apresentados à agressividade de diferentes maneiras, alguns pais ou pessoas significativas têm como tarefa a apresentação gradual do mundo externo e devem auxiliar a criança na descoberta de seu vasto mundo interno, ajudando-a no processo de adaptação sem que aspectos fundamentais de seu ser sejam corrompidos. Há pais, porém, que não toleram a agressividade dos filhos, ainda que esta venha comunicar algo de vital importância, e acabam por imobilizá-los.
Na pior das possibilidades, como no caso do vampiro que perdeu os dentes, a repressão exagerada em relação a atitudes agressivas pode causar inibição, introspecção, postura passiva diante das próprias necessidades e, portanto, diante da vida. A criança acaba se adaptando ao mundo em vez de sentir-se atuante, capaz de alterar criativamente a realidade. A crença, a partir de então, gira em torno de que o mundo, assim como as pessoas mais importantes de sua vida, não tolerará seu “eu” por inteiro, sendo necessária a construção de um “eu adaptado”.
>> Caso não queira saber maiores detalhes sobre o filme, sugiro parar a leitura por aqui. <<
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Max é filho de uma mãe ausente e ocupada (Catherine Keener), uma criança solitária em seu mundo, atormentada por todo tipo de sensações que não são nomeadas e nem significadas. Utiliza-se, então, dos recursos disponíveis para atrair o olhar da mãe. No início do filme conta a história do vampiro banguela, uma metáfora do seu mundo interno, tolhido e repreendido.
Infelizmente, a história do vampiro não mobilizou sua mãe e Max teve de ser mais claro, subindo em cima da mesa de jantar, gritando “alimente-me, mulher”. Refere-se aí à sua profunda anemia, carência, desnutrição emocional. A mãe fica assustada e brava, não compreendendo, mais uma vez, a expressão de solidão e desespero de Max, exigindo suas desculpas.
Ainda mais desesperado, pois além de não ter tido sua raiva contida e legitimada com amor, foi novamente tolhido e incompreendido, Max morde a mãe, “rouba o alimento” negado que lhe é de direito. Uma das maiores características da loucura é a solidão, porém, Max ainda tinha um recurso.
De castigo em seu quarto, sozinho com suas angústias e tendo a enorme incumbência de lidar com sua raiva e desespero, recorre à brincadeira. O brincar configura-se como um espaço de transição, uma terceira esfera que é tanto subjetiva (pelo teor da brincadeira) quanto objetiva, concreta e está diretamente vinculada à saúde, pois se torna uma ferramenta fundamental que permite expressões, “digestão psíquica” e exercício da capacidade criativa entre tantos outros benefícios. Na brincadeira que inventa, Max refugia-se em um mundo onde é o rei de seus habitantes, os monstros. Eles são grandes, quando têm raiva tornam-se assustadores, mas ao mesmo tempo são peludões e fofinhos.
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Cada monstro representa um aspecto de sua personalidade ainda não integrada, aspectos soltos, dissociados. KW (Lauren Ambrose), uma monstra que não tolera agressividade, tem como função a expressão deste lado tão sofrido, representado pela repressão de sua mãe. Outro monstro, Alexander (voz de Paul Dano), é observador e solitário, pouco notado pelos outros, assim como Max. Entretanto, foi com Carol (James Gandolfini) que Max se identificou mais, um monstro com muita raiva represada, impulsivo, inconsequente, sonhador e com certa dificuldade em adaptar-se ao seu grupo (como o vampiro), só que desta vez pelo “excesso de dentes”. Ambos são solitários e inadequados, a falta e o excesso. Qual a medida, afinal?
No “mundo real” de Max não foi construído um espaço onde pudesse se expressar sem retaliações. Com os monstros, Max sente-se onipotente, criador e fundamental, podendo experimentar-se, empregar sua energia, quebrar sem necessariamente destruir, morder sem precisar devorar. O que faz que em algum momento de sua vida, sinta-se criador, suprimindo a falta que sente deste espaço.
Quem sente falta, já teve e quer novamente. As crianças dão muitas dicas de suas necessidades e quando as coisas não vão bem, é preciso estar atento para compreendê-las.
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Todos têm uma bela adormecida que está à espera do príncipe que a despertará, assim como têm também uma bruxa que cria obstáculos. Um vampiro e um “vampirizado”. Um monstro feio, grande, assustador e uma criança assustada, pequena, impotente, de outro lado. Todos nos habitam e nos representam, os opostos nos constituem. É da falta de integração destes opostos que “surgem” tantas doenças (sofrimentos) psíquicas.
A depressão pode ser representada por um “recolhimento dos dentes”, pela sensação de que seu uso pode fazer um estrago irreparável, então há uma inibição inclusive das manifestações saudáveis. As psicoses nascem do abismo criado entre os opostos, a tensão entre os diversos aspectos de nossas personalidades. As neuroses, da negação de partes do eu que sente a necessidade de que tudo seja mantido sob absoluto controle e assim por diante.
O cristianismo e outras religiões exercem uma função curiosa, incentivam a repressão de aspectos “perigosos” para a sobrevivência social, como a inveja, a raiva, o ódio, a gula, etc., levando a pessoa a uma não integração, à negação destes aspectos; reza-se para que o “demônio” não se manifeste, para que o “encosto” deixe o corpo que “não lhe pertence”; somos Deus e o diabo, o espírito atacado e o próprio encosto. Nossa sociedade incentiva essa dicotomia.
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Os adultos com saúde emocional fazem uso deste espaço intermediário, de transição, proporcionado pelo ato de brincar por meio da criatividade e das expressões culturais. Um bom filme consegue expressar aquilo que não ousamos e ao vivenciá-lo, temos a oportunidade de nos reconhecer na dor do outro, o que causa um grande alívio. Uma boa música vai ao encontro da nossa “alma” e atribui melodia ao nosso eu, feito de sentimentos, sensações e ritmos; um jogo também, onde é possível exercitar a competitividade, a “voracidade”, sem colocar em risco as relações pessoais, afinal é “só” um jogo, e assim por diante. Mas, para que a brincadeira seja possível, temos de abrigar o sentimento de que somos capazes de criar e transformar o mundo sempre que for preciso.
Um banho pode se tornar uma brincadeira de aromas e texturas, a alimentação um exercício de cores e sabores. A vida pode ser apenas vivida, mas só faz sentido e é real quando criada e recriada.
“Essa é a dureza de Deus, os opostos, a dureza da própria vida”, Joseph Campbell