“Fez-se um clarão, o relógio parou, tudo parou… Houve canibalismo, esse que era o nosso grande medo”.
A Terra sofre um colapso ao ser atingida por um evento cataclísmico. Milhares de pessoas morrem afogadas, incendiadas e famintas. O caos, o terror e a fome selecionam os sobreviventes, aqueles que tiveram maior capacidade de adaptação a uma realidade animalesca, crua, sangrenta. Esse é o cenário do filme A Estrada, baseado no livro The Road, best seller de Cormac McCarthy.
Os sobreviventes desfazem-se de seus aspectos humanos pouco a pouco, até regredirem para um estágio muito anterior ao que nos encontramos hoje. O drama de cada uma daquelas pessoas é representado na luta de uma família pela sobrevivência. Fazendo um exercício projetivo, se nos colocássemos naquele cenário totalmente cinzento e escuro, se tropeçássemos em pedaços de nossa civilização, se convivêssemos com “restos” de pessoas civilizadas e tivéssemos de lidar com a necessidade de transcender nosso limite físico e psíquico para sobreviver, o que restaria de nós? Até onde nossa ética e tudo o que conhecemos a nosso respeito resistiria?Caminhando para o litoral em busca de comida e abrigo, pai e filho vivem este drama. Passam a sofrer alterações de caráter e, diante desse novo contexto, reavaliam suas necessidades e seus atos. O senso de responsabilidade, culpa e remorso é readequado. O estado de vigília constante é ativado. Os instintos de sobrevivência tomam o lugar do refinamento e da ética, porém, uma realidade interna permanece muito sólida, norteadora, e não havia morrido para pai e filho. Trata-se do sentimento de amor que nutrem um pelo outro, que os impulsiona e justifica a luta por continuarem vivos.
Após presenciar uma forte mudança em seu comportamento anterior, o filho (Kodi Smit-McPhee) pergunta a seu pai (Viggo Mortensen): “Ainda somos os homens bons? Como saberemos se não formos mais?” revelando seu conflito em relação à mudança de identidade e parâmetro. Continua: “Como saberemos reconhecer um homem bom?”. O pai responde: “Somos bons e reconhecemos o homem bom pela capacidade que tem em manter aceso seu fogo interior”, referindo-se à capacidade de envolvimento, à capacidade de amar.Façamos outro pequeno exercício de reflexão transpondo a realidade do filme à nossa. O que somos hoje, o que entendemos por homem moderno, é resultado de séculos de experiência cultural, religiosa, política e afetiva. Você sente que falta algo de humano ao morador de rua, com suas unhas compridas, pele engrossada pela sujeira, cheiro ruim e falta quase total de capacidade para convivência em sociedade? E naquele assassino que pratica “monstruosidades”? Ou na mãe que rejeita seu filho?
Imagine-se assistindo a um filme com o resumo da vida de uma pessoa nessas condições. Poderíamos não concordar com seus atos, mas compreenderíamos. A partir do momento em que nos colocamos no lugar do outro, ainda que por um breve instante, aquele “monstro” deixa de ser tão esquisito e passa a ser familiar, humano. Assim como nos filmes, somos levados a compreender situações difíceis de serem compreendidas sem uma reflexão.A mãe pode rejeitar sua criança por não ter tido aceitação de si própria, aos olhos de alguém. Como dar aquilo que não teve? O assassino pode ter sido assassinado há muito tempo. O mendigo pode ter vivido sempre a sensação de abandono interno.
Em A Estrada, o amor os mantém vivos, apenas isso. Como nos mostra o filme, o amor pode manter nosso vínculo com a vida, ainda que em um cenário terrível. Este mesmo sentimento pode ser vivido em forma de uma mágoa profunda, dependendo de como é experimentado. O vínculo com a vida sofre sérios riscos quando sofremos a falta do amor em sua plenitude (paterno, materno, afetivo em geral). Pessoas que nunca foram legitimadas com qualidade em sua existência podem enlouquecer, perder a vontade de viver, desligar-se de tudo que havia adquirido até então.
Tudo que construímos eticamente, socialmente, pode ganhar colorido e sentido quando temos um sentimento verdadeiro que justifica nossa existência. A cor cinza e a atmosfera depressiva e amedrontadora do filme não são mais assustadoras do que a ausência, a falta, a solidão existencial, intocada, quando ocorre um “cataclismo” que devasta o mundo interior e o torna empobrecido, faminto, sem cor.
A relação verdadeira nos salva da pior das ausências, a do nosso próprio “fogo interior”, acendido pelo outro e vivo, quente, brilhante, mesmo em meio ao cenário mais gelado e cinzento. As relações nos salvam e, quando nocivas, podem nos remeter ao caos interno, que nem a mais evoluída, colorida e organizada das sociedades seria capaz de resgatar.
por Fernanda Davidoff




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